Pedido de informação-Junta de Freguesia de …

I - O pedido:

O Senhor Presidente da Junta de Freguesia de …, através de email de 13 de dezembro de 2022, vem solicitar parecer sobre o seguinte:

Esta Junta de Freguesia de … subscreveu os seus seguros comigo quando era sócio-gerente de uma empresa de mediação.

Atividade que deixei de exercer há mais ou menos 5 anos e passei a minha quota na altura para a minha ex-esposa e os meus 2 filhos.

Fui eleito presidente de Junta em 2021 pela primeira vez.

A última apólice subscrita foi há 5 anos, todas as outras foram contratadas anteriormente.

Pergunto, a Junta pode continuar a manter os contratos de seguro com a empresa de Mediação em que os meus 2 filhos têm uma quota pequena, mas superior a 10% cada um ou mesmo tendo sido subscritos há mais de 5 anos terá de cancelá-los e mudar de fornecedor?”

 

II - Análise:

  1. Quanto à questão colocada: conflito de interesses

Só à luz das circunstâncias de cada caso concreto cabe assegurar a credibilidade da decisão administrativa, identificando-se quem tenha direta ou indiretamente, um interesse financeiro, económico, ou outro interesse pessoal, suscetível de comprometer a sua imparcialidade no contexto da sua atividade ou função.

A matéria questionada prende-se com as garantias da imparcialidade da administração, cujos princípios enformadores, em primeira linha, estão consagrados no n.º 2 do artigo 266.º da Constituição:

Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem atuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé”.

As garantias da imparcialidade, segundo estes princípios, surgem integradas no Código de Procedimento Administrativo, CPA, estabelecendo-se casos de presunção inilidível de parcialidade, conforme o disposto no n.º 1 do artigo 69.º do CPA: “ os titulares de órgãos da Administração Pública e os respetivos agentes, bem como quaisquer outras entidades que, independentemente da sua natureza, se encontrem no exercício de poderes públicos, não podem intervir em procedimento administrativo ou em ato ou contrato de direito público ou privado da Administração Pública “, nos casos previstos nas alíneas a) a f) do n.º 1 do mesmo artigo.

Ora, de acordo com a situação descrita, conclui-se, desde logo, que os filhos[1] têm interesse no procedimento, o que configura um caso de impedimento previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 69.º do CPA:

“b) Quando, por si ou como representantes ou gestores de negócios de outra pessoa, nele tenham interesse o seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, algum parente ou afim em linha reta ou até ao segundo grau da linha colateral, bem como qualquer pessoa com quem vivam em economia comum ou com a qual tenham uma relação de adoção, tutela ou apadrinhamento civil;”

Verificando-se um caso de impedimento, de acordo com o artigo 70.º do CPA, há lugar à arguição e declaração do impedimento, com os efeitos previstos nos artigos 71.º e 72.º do CPA (obrigação de comunicar o impedimento; declaração do impedimento; substituição no procedimento pelo respetivo suplente, ou se não houver ou não puder ser designado suplente, o órgão funciona sem o membro impedido).

Por outro lado, além da figura de impedimento, o CPA estabelece ainda, no seu artigo 73.º, um regime de dispensa de intervenção no procedimento “quando ocorra circunstância pela qual se possa com razoabilidade duvidar seriamente da imparcialidade da sua conduta ou decisão” (exemplifica alguns casos nas alíneas a) a e) do n.º 1 deste artigo).

Neste caso, ainda que não existisse o caso de impedimento, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 69.º, relativamente aos filhos, o facto da ex-cônjuge manter interesse na manutenção do contrato de seguros, constitui uma circunstância que poderá suscitar dúvidas sobre a imparcialidade da decisão, pelo que a sua intervenção deverá ser excluída por iniciativa do próprio.

Desta forma, quanto ao contrato em causa, ou qualquer outro procedimento, ato, contrato, sempre que possa ocorrer uma suspeita sobre a imparcialidade, com base no artigo 73.º do CPA, deverá o titular de órgão ou agente apresentar um pedido de dispensa de intervenção no procedimento, cujos efeitos são idênticos ao caso de impedimento, de acordo com o previsto nos artigos 71.º e 72.º do CPA.

Esta matéria assume, ainda, particular relevância no âmbito do mandato autárquico, porquanto os eleitos locais estão especialmente vinculados ao cumprimento de princípios de prossecução do interesse público, de acordo com o artigo 4.º do Estatuto dos Eleitos Locais, aprovado pela Lei n.º 29/87, de 30 de junho (redação atual):

“i) Salvaguardar e defender os interesses públicos do Estado e da respetiva autarquia;
ii) Respeitar o fim público dos poderes em que se encontram investidos;

iii) Não patrocinar interesses particulares, próprios ou de terceiros, de qualquer natureza, quer no exercício das suas funções, quer invocando a qualidade de membro de órgão autárquico;

iv) Não intervir em processo administrativo, ato ou contrato de direito público ou privado nem participar na apresentação, discussão ou votação de assuntos em que tenha interesse ou intervenção, por si ou como representante ou gestor de negócios de outra pessoa, ou em que tenha interesse ou intervenção em idênticas qualidades o seu cônjuge, parente ou afim em linha recta ou até ao 2.º grau da linha colateral, bem como qualquer pessoa com quem viva em economia comum;

v) Não celebrar com a autarquia qualquer contrato, salvo de adesão;

vi) Não usar, para fins de interesse próprio ou de terceiros, informações a que tenha acesso no exercício das suas funções;”

Além dos impedimentos previstos no CPA e no Estatuto dos Eleitos Locais, aos membros dos órgãos executivos do poder local[2], aplica-se o regime especial dos membros dos órgãos executivos do poder local, previsto na Lei n.º 52/2019, de 31 de julho (versão atualizada)[3]:

Deste modo, ficam também abrangidos pelo regime de impedimentos que vem consagrado no seu artigo 9.º.

Tendo em conta a situação em concreto, destaca-se a alínea a) do n.º 2 deste artigo:

“2- Os titulares de cargos políticos ou de altos cargos públicos de âmbito nacional, por si ou nas sociedades em que exerçam funções de gestão, e as sociedades por si detidas em percentagem superior a 10 % do respetivo capital social, ou cuja percentagem de capital detida seja superior a 50 000 (euro), não podem:

  1. Participar em procedimentos de contratação pública;(…)”

A verificação dos impedimentos previstos no artigo 9.º é determinante, porque conforme vem regulado no mesmo regime, no seu artigo 8.º, os titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos que, nos últimos três anos anteriores à data da investidura no cargo, tenham detido, nos termos do artigo 9.º, a percentagem de capital em empresas neles referida ou tenham integrado corpos sociais de quaisquer pessoas coletivas de fins lucrativos não podem intervir:

“a) Em procedimentos de contratação pública de fornecimento de bens ou serviços ao Estado e a outras pessoas coletivas públicas aos quais aquelas empresas e pessoas coletivas por si detidas sejam opositoras;

b) Na execução de contratos do Estado e demais pessoas coletivas públicas com elas celebrados;

c) Em quaisquer outros procedimentos formalmente administrativos, bem como negócios jurídicos e seus atos preparatórios, em que aquelas empresas e pessoas coletivas sejam destinatárias da decisão, suscetíveis de gerar dúvidas sobre a isenção ou retidão da sua conduta, designadamente nos de concessão ou modificação de autorizações ou licenças, de atos de expropriação, de concessão de benefícios de conteúdo patrimonial e de doação de bens.”

Pelo que, caso se verifique, nos últimos três anos anteriores à data da investidura no cargo, um impedimento resultante da aplicação do artigo 9.º, é de concluir, por via da aplicação deste regime, pela existência de um caso de impedimento especialmente aplicável aos membros dos órgãos executivos do poder local.

Caso tenha decorrido mais de três anos sobre a cessação da sua participação na empresa em questão, não é possível concluir pela existência de impedimento especialmente decorrente do regime exposto.

Porém, tal não afasta, a partir da investidura no cargo, o já exposto quanto à proibição de intervir em procedimento administrativo, ato, contrato, quando nele tenham interesse os filhos, por força do impedimento previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 69.º do CPA.

Por último, em matéria de conflito de interesses, cumpre ainda fazer referência ao regime geral da prevenção da corrupção, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 109-E/2021, de 9 de dezembro, cuja aplicação, tendo em atenção o procedimento de contratação pretendido, assume particular relevo:

De um modo geral, com este regime, impõe-se às entidades públicas que adotem medidas destinadas a assegurar a isenção e a imparcialidade dos membros dos respetivos órgãos de administração, seus dirigentes e trabalhadores e a prevenir situações de favorecimento, designadamente no âmbito do sistema de controlo interno (cf. os seus artigos 13.º e 15.º).

Nesse sentido, os membros dos órgãos de administração, dirigentes e trabalhadores das entidades públicas assinam uma declaração de inexistência de conflitos de interesses nos procedimentos em que intervenham, respeitantes às matérias ou áreas de intervenção definidas nas alíneas a) a d) do n.º 2 do seu artigo 13.º, como seja o caso da contratação pública[4], concessão de subsídios e outras.

Em suma, a matéria questionada, conduz obrigatoriamente à identificação, em especial, das regras e os princípios aplicáveis em matéria de contratação pública, conforme a seguir se apresenta:

 

  1. Quanto ao contrato:

Tendo por referência a situação descrita no presente pedido, considera-se de proceder ao seguinte enquadramento legal:

As autarquias locais são entidades adjudicantes de acordo com alínea c) do n.º 1 do artigo 2.º do Código dos Contratos Públicos, CCP, estando por isso sujeitas às regras da contratação pública previstas neste Código.

O regime da contratação pública estabelecido no CCP é aplicável à formação dos contratos públicos que, independentemente da sua designação e natureza, sejam celebrados pelas entidades adjudicantes acima referidas[5].

O procedimento de formação de qualquer contrato inicia-se com a decisão de contratar, a qual deve ser fundamentada e cabe ao órgão competente para autorizar a despesa inerente ao contrato a celebrar, de acordo com o n.º 1 do artigo 36.º do CCP (pelo executivo da freguesia)[6].

Para a escolha do procedimento pré-contratual adequado às necessidades, as entidades adjudicantes estão condicionadas pelo valor do contrato, conforme vem fixado no artigo 20.º do CCP.

Neste quadro legal, a escolha do ajuste direto, de acordo com o critério regra para a sua adoção, implica que o contrato a celebrar fique sujeito a um valor limite, conforme vem indicado na alínea a) do n.º 1 do artigo 20.º do CCP (para a aquisição de serviços: valor inferior a € 20.000).

Sendo esse o caso, torna-se necessário alertar para o seguinte:

No caso de contratos de aquisição de serviços, a fixação no caderno de encargos de um prazo de vigência do contrato a celebrar superior a três anos deve ser fundamentada, conforme dispõe o artigo 48.º do CCP.

Com esta disposição, pretende-se assegurar o acesso de um maior número de operadores à celebração de contratos públicos, de modo a impedir a manutenção de contratos no tempo, o que colocaria em causa o princípio da concorrência, especialmente consagrado no artigo 1.º-A do CCP.

No mesmo sentido, tendo por objetivo impedir que as relações contratuais perdurem com as mesmas entidades, cumpre alertar para o disposto em matéria de impedimentos que limitam a escolha das entidades a convidar para apresentar propostas e que devem ser considerados no caso de convite ou consulta à mesma entidade, de acordo com o n.º 1 do artigo 113.º do CCP, em especial quanto à regra prevista no n.º 2 deste artigo:

Não podem ser convidadas a apresentar propostas, entidades às quais a entidade adjudicante já tenha adjudicado, no ano económico em curso e nos dois anos económicos anteriores, na sequência de consulta prévia ou ajuste direto adotados nos termos do disposto nas alíneas c) e d) do artigo 19.º e alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 20.º, consoante o caso, propostas para a celebração de contratos cujo preço contratual acumulado seja igual ou superior aos limites referidos naquelas alíneas.”

Sublinhando-se, por isso, que a escolha das entidades a convidar cabe ao órgão competente para a decisão de contratar que, nos termos do n.º 1 do artigo 36.º do CCP, conforme já referido, é o mesmo que tem competência para autorizar a respetiva despesa, em conformidade com o n.º 1 do artigo 113.º do CCP[7].

 

IV - Conclusão - Proposta:

A intervenção em procedimento que integre a previsão das alíneas a) a f) do n.º 1 do artigo 69.º do CPA, por parte do presidente da junta de freguesia, em violação do dever de comunicar a causa de impedimento, incorre em violação do dever específico de função, de acordo com o artigo 4.º, alínea iv), do Estatuto dos Eleitos Locais.

Perante qualquer outra situação em que se possa, com razoabilidade, duvidar seriamente da imparcialidade da sua conduta ou decisão, deverá o mesmo apresentar pedido de dispensa de intervenção no procedimento, de acordo com o 73.º do CPA.

Sendo o mercado de seguros um mercado concorrencial, a manutenção de qualquer contrato além do prazo máximo, sem fundamentação, não respeita as regras e os princípios fixados no CCP (artigos 1.º-A e 48.º).

Nestes termos, em observância dos princípios da transparência, da igualdade e da concorrência, sugere-se a realização de um novo procedimento pré-contratual para a formação do contrato, de acordo com as regras previstas no CCP (artigo 20.º), em especial, quanto à escolha das entidades a convidar, no caso de ser adotado o ajuste direto ou a consulta prévia (artigo 113.º do CCP).

[1]Nos termos do artigo 1580.º do Código Civil são descendentes, afins em linha reta.

[2] A junta de freguesia é o órgão executivo, cf. o n.º 2 do artigo 6.º da Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro (versão atualizada), Regime Jurídico das Autarquias Locais.

[3] Aprova o regime do exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos. De acordo com o n.º 1 do seu artigo 2.º “são cargos políticos para os efeitos da presente lei: i) Os membros dos órgãos executivos do poder local”

[4]Cf. o n.º 4 do artigo 1.º A do Códigos dos Contratos Públicos, “considera-se conflito de interesses qualquer situação em que o dirigente ou o trabalhador de uma entidade adjudicante ou de um prestador de serviços que age em nome da entidade adjudicante, que participe na preparação e na condução do procedimento de formação de contrato público ou que possa influenciar os resultados do mesmo, tem direta ou indiretamente um interesse financeiro, económico ou outro interesse pessoal suscetível de comprometer a sua imparcialidade e independência no contexto do referido procedimento”.

[5] Não sejam excluídos do seu âmbito de aplicação, por força do artigo 4.º, 5.º, 5.º-A e 6.º-A do CCP.

[6] A junta de freguesia pode delegar no presidente a autorização para a realização de despesas, até um limite estipulado pelo executivo e/ou o pagamento das despesas devidamente orçamentadas, desde que se enquadrem no âmbito das competências e atribuições das Freguesias, cf. alínea i) do n.º 1 do artigo 18.º do Regime Jurídico das Autarquias Locais (Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro (versão atualizada).

[7] Sobre a aplicação do artigo 113.º remete-se para a consulta da Orientação técnica n.º 01/CCP/2018, emitida pelo Instituto dos Mercados Públicos do Imobiliário e da Construção, I.P., (IMPIC, I. P.), disponível para consulta em: (Microsoft Word - 1_Orientação Técnica IMPIC-CCP_FINAL.doc).

 

Data de Entrada
Número do Parecer
2023/001